«Na última noite do Carnaval, que foi justamente aos 8 dias do mês de fevereiro, do corrente ano, pelas 9 horas e meia da noite entrava no Teatro de S. João, desta heroica e muito nobre e sempre leal cidade, um dominó de cetim.
Dera ele os dois primeiros passos no pavimento da plateia, quando um outro dominó de veludo preto veio colocar-se-lhe frente a frente, numa contemplação imóvel.
O primeiro demorou-se um pouco a medir as alturas do seu admirador, e virou-lhe as costas com indiferença natural.
O segundo, momentos depois, aparecia ao lado do primeiro, com a mesma atenção, com a mesma penetração de vista.
Desta vez o dominó-cetim aventurou uma pergunta naquele desgracioso falsete, que todos nós conhecemos:
— Não quer mais do que isso?»
SOBRE O AUTOR:
Camilo Castelo Branco nasceu a 16 de março de 1825, nos Mártires, Lisboa. Além de ser, com Eça, um dos romancistas mais importantes da literatura portuguesa, foi também cronista, crítico, dramaturgo, poeta e tradutor. Entre 1851 e 1890, escreveu mais de 260 obras, algumas publicadas em folhetins, quase todas no estilo do romantismo, sendo o primeiro escritor de língua portuguesa a viver exclusivamente dos seus trabalhos literários.
No Porto, tentou o curso de Medicina, mas acabou por optar por Direito. A partir desse ano, levou uma vida boémia, repleta de paixões, dividindo o seu tempo entre cafés e salões burgueses, enquanto se dedicava ao jornalismo.
Apaixonou-se pela mulher do negociante Manuel Pinheiro Alves, Ana Augusta Vieira Plácido, com quem fugiu. Após algum tempo a monte, foram capturados e julgados pelas autoridades. Absolvidos do crime de adultério, passaram a viver juntos.
Ana Plácido teve um filho, supostamente do antigo marido, seguido por mais dois filhos de Camilo. Com uma família numerosa para sustentar, o autor de Amor de Perdição começou a escrever a um ritmo alucinante. Desde 1865, Camilo começou a apresentar sintomas de neurossífilis, que, além de outros problemas, provocava uma cegueira progressiva, impedindo-o de ler e trabalhar adequadamente, o que o mergulhou em desespero suicidário.
Entre 1873 e 1890, deslocava-se regularmente à Póvoa de Varzim, onde se perdia no jogo e escrevia parte da sua obra no antigo Hotel Luso-Brasileiro. Ali, reunia-se com personalidades de destaque intelectual e social. Passou os últimos anos de vida ao lado de Ana, mas nunca encontrou a estabilidade emocional por que ansiava. As dificuldades financeiras, a doença e os filhos trouxeram-lhe grandes preocupações.
Suicidou-se a 1 de junho de 1890, em Vila Nova de Famalicão, na freguesia de São Miguel de Seide.